CRÔNICA: O nascimento de uma inspiração

Foi de uma esquina na noturna Lapa, no Rio de Janeiro, que ouvi um som ainda pouco familiar pra mim. Um piano de peso somava-se ao som da bateria, do contrabaixo e do trompete, projetando uma atmosfera envolvente a metros dali. Enquanto caminhava, estranhava o pouco movimento, e bailava para afastar a chuva fina da ponta do cigarro, que levava entre os dedos. A baixa iluminação dos Arcos da Lapa dava ao ambiente um clima soturno e de medo, que logo foi interrompido por uma roda de samba mambembe que se aproximava.

Juntei-me à roda e cantamos sambas de Donga, Wilson Batista e Noel Rosa:

“O chefe da polícia pelo telefone manda me avisar
Que na Carioca tem uma roleta para se jogar
O chefe da polícia pelo telefone manda me avisar
Que na Carioca tem uma roleta para se jogar”

“Cheguei cansado do trabalho
Logo a vizinha me falou:
– Oh! seu Oscar
Tá fazendo meia hora
Que sua mulher foi-se embora”

“Quem é você que não sabe o que diz?
Meu Deus do Céu, que palpite infeliz!
Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira,
Oswaldo Cruz e Matriz
Que sempre souberam muito bem
Que a Vila Não quer abafar ninguém,
Só quer mostrar que faz samba também”

A roda, composta por três jovens, era a vida que faltava para aquele som abafado, que se ouvia ao longe, e o clima sombrio. Ivone sambava com as pontas dos pés enquanto batucava um tamborim, José, com seu fiel chapéu, entoava as melodias e batucava o pandeiro, e Angenor carregava, em riste, seu violão que harmonizava o trio. Juntos, seguimos em direção ao bar. O quarteto instrumental parecia improvisar um som que, àquela altura, já parecia suficientemente familiar para mim.

Paramos à porta e seguramos o som. O quarteto do bar imediatamente parou também. Antônio, ao piano, deu um gole no whisky à sua frente, e logo sinalizou a nós, que voltamos a tocar, acompanhados pelo maestro e os demais músicos. Adentramos o recinto e logo percebi que a música ali se transformara. Já não era mais o que eles tocavam – anos depois descobri que aquilo era Jazz – e também não era o nosso samba. Era algo que eu não conseguia entender naquele momento. Era algo harmônico, mas que eu não entendia.

E foi então que ouvimos passos largos e vimos o semblante de um homem tímido, que trazia um violão na diagonal. João, com um terno branco mal passado, apareceu ali diante de nossos olhos. Mas não foi o que pudemos ver que transformou a nossa noite. Foi o som novo, novíssimo, que saía de seu instrumento. Paramos novamente o som e ouvimos. João cantarolava:

“Dia de luz, festa de sol
E o barquinho a deslizar
No macio azul do mar

Tudo é verão, o amor se faz
No barquinho pelo mar”

E todos nós voltamos a tocar. Eu não sabia o que era, mas tinha ideia da grandeza. Era como pão fresquinho, café recém-passado e bebida gelada.

Nascia ali a Bossa Nova.

Por: João Santiago

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