O espetáculo-desacato de Chico Buarque

FOTO: CÍNTIA CARVALHO/SETOR VIP

Desacatando e desafinando o coro dos haters, com sua costumeira elegância, Chico abre o show “Caravanas” com seu violão em riste na canção “Minha Embaixada Chegou”, de Assis Valente, para já prenunciar a que veio e onde conduz nas 31 canções do repertório ali apresentado.

Mais do que músicas de um setlist, é possível notar um artista comprometido com o nosso tempo, que fala de um Brasil atualíssimo, tanto nas faixas do disco que dá nome à turnê, quanto na ressignificação que dá às suas próprias composições, extensivas e complementares ali no espetáculo.

Pois bem, sim, é um espetáculo. Um show, muitas vezes, permite improvisos e mudanças no roteiro, mas Francisco nos apresenta um espetáculo contemporâneo, sem espaço para escapadas. Tudo muito bem costurado ali onde cada canção representa uma caravana, palavra esta também ressignificada pelo compositor.

Na sequência da abertura, vem “Mambembe” – ‘debaixo da ponte, cantando. Por baixo da terra, cantando. Na boca do povo’. E “Partido Alto”, em que Chico termina com um rapeado – ‘mas se alguém me desafia e bota mãe no meio, dou pernada a três por quatro e nem me despenteio. Que eu já to de saco cheio’.

– Vai pra Cuba! – apela a gente ordeira e virtuosa.

E ele vai. Com a versão que fez para “Yolanda”, do cantor e compositor cubano Pablo Milanés, Chico conduz sua caravana para a ilha do mar do Caribe e já emenda na inédita “Casualmente”, canção integralmente em espanhol, em parceria com Jorge Hélder, que dedicou à cidade de Havana.

Na sequência, faz-se um arrepiante e belíssimo silêncio no recinto para ouvir o artista brasileiro cantar “A moça do sonho”, parceria antiga com Edu Lobo, mas gravada apenas em seu último disco. Sob as luzes do palco, Chico convida seu maestro soberano na composição “Retrato em Branco e Preto”, onde reverenciaria outras duas vezes em seu espetáculo-desacato.

E por falar em desacatar, o tal artista brasileiro custa a crer ‘que meros lero-leros de um cantor possam te dar tal dissabor’, e segue com a canção “Desaforos”, de seu mais recente álbum, irônica aos haters de plantão, suspendendo, com “Injuriado”, a caravana dos odiosos. Inicia-se e encerra-se outra em “Dueto”, na saga lírica da certeza de um par que se encontra. Em 1980, Buarque já havia gravado a canção com Nara Leão e em 2001, com Zizi Possi. No disco “Caravanas”, o dueto é com Clara Buarque, sua neta, apresentando ali um dos principais vestígios de sua finitude.

“Eis o malandro na praça outra vez”. Uma das principais virtudes de Chico é tornar suas canções eternas, ainda que, por vezes, pareçam circunstanciais. A sequência a seguir de “A Volta do Malandro” e “Homenagem ao Malandro”, ambas feitas para o espetáculo “Ópera do Malandro”, apesar de tratarem de um momento muito específico, ressignificam-se ali no espetáculo. Chico até aquele ponto prepara o terreno para sua chegada derradeira. O malandro pra valer está de volta, aposentou a navalha e leva a caravana consigo.

Em seguida, “Palavra de Mulher” e os mais rasgantes versos do eu-lírico feminino conduzidos com maestria pelo poeta até “As Vitrines”, lançada no ano de 1981, no disco “Almanaque”. Nesta, ele já abordava liricamente as problematizações da prostituição, da moça e da “poesia que entornas no chão”.

A iluminação impecável e criativa de Maneco Quinderé, que cria o pano de fundo simulando uma rede de trave neste momento, traz a retomada do artista para seu mais recente álbum, com a canção “Jogo de Bola”. Nela, Chico traça um paralelo entre uma partida de futebol e o sentido do envelhecer: “É ver o próprio tempo num relance e sorrir pro tempo”.

Por outro lado, em sua parceria com o neto Chico Brown, “Massarandupió” conta sobre a meninice de seu “parceiro mais amado”, como o próprio autor se refere antes de apresentar a canção. Massarandupió é uma praia na Bahia onde o pequeno Francisco foi criado e desenvolveu a caravana da infância. “Devia o tempo de criança ir se arrastando até escoar, pó a pó / Num relógio de areia o areal de Massarandupió”. Ali, o Velho Francisco demonstra mais um sinal evidente de sua finitude, em vida e obra a ser perpetuada pelos seus.

Em “Outros Sonhos”, canção que segue, a caravana é do sonho pelo lugar ideal que de tão sui generis, o eu-lírico sabe que lá terá seu amor correspondido. “E por sonhar o impossível, sonhei que tu me querias”. Ainda há o refrão cantado em espanhol que, segundo o próprio Chico, ouvia de seu pai, ainda na infância.

“Blues pra Bia” retoma o novo disco, com a saga de um amor impossível, já “que no coração de Bia, meninos não tem lugar” e, então, ao repetir a letra pela segunda vez, o compositor, já resignado, agora está apaixonado por seu próprio blues, donde podemos perceber um peso maior do piano, dos sopros e das guitarras.

Nas canções seguintes, “A História de Lily Braun” e “A Bela e A Fera”, Chico chama sua caravana circense nas duas parcerias que fez com Edu Lobo para o espetáculo “O Grande Circo Místico”. Na primeira, um globo prateado desce ao centro do palco e o jogo de luzes impecável de Quinderé dá o tom de “drink no dancing”. A segunda, gravada originalmente pelo gênio do soul brasileiro, Tim Maia, encerra o momento Chico e Edu no desacato.

À meia luz e sentado em seu banquinho, Buarque repousa as mãos nos joelhos para cantar “Todo o Sentimento”, parceria dele com Cristóvão Bastos, que também participou da composição da canção seguinte, “Tua Cantiga”. Falando de amor, Chico emociona e leva parte do público ao choro contido na primeira, mas logo se levanta e caminha de um lado a outro do palco apresentando a segunda, música de seu mais recente álbum.

Aproximando-se do fim do espetáculo-desacato, o compositor apresenta ali ao vivo “Sabiá”, parceria dele com Tom Jobim, que fora campeã do III Festival Internacional da Canção, em 1968. À época, o Brasil vivia sob a repressão da Ditadura Militar e as duas canções finalistas eram “Caminhando”, de Geraldo Vandré, favorita do público e considerada engajada politicamente e “Sabiá”, escolhida pelo júri e considerada alienada pelo público.

Tom e Chico foram vaiados em pleno Maracanãzinho na finalíssima do Festival. Com o passar dos anos, a canção teve seu valor reconhecido, que prenunciava o momento de exílio político pelo qual diversos intelectuais, políticos e figuras divergentes do governo ditatorial passaram. Agora, podemos ver um cantor aclamado com uma de suas mais belas composições.

Chico segue, apresentando sua trupe formada por Luiz Claudio Ramos (violão, guitarra e arranjos), João Rebouças (piano), Bia Paes Leme (teclado e vocais), Chico Batera (percussão), Jorge Helder (contrabaixo), Marcelo Bernardes (flauta e sopros) e Jurim Moreira (bateria), com uma homenagem ao baterista que há tantos anos o acompanhava em turnês, Wilson das Neves. Com um chapéu panamá, canta “Grande Hotel”, reverenciando o mestre e parceiro na canção.

Levando mais uma vez ao palco sua caravana teatral, Chico e banda apresentam “Gota D’Água”, originalmente interpretada por Bibi Ferreira na montagem original da peça de mesmo nome. Na sequência, encerrando as faixas de seu mais novo álbum, vem “As Caravanas”, que traça um paralelo entre aqueles que chegam dos subúrbios para as praias da zona sul carioca e os refugiados muçulmanos que migram para Europa. Uma denúncia da “gente ordeira e virtuosa que apela pra polícia despachar de volta o populacho pra favela ou pra Benguela ou pra Guiné”.

Ao final, chama sua “Estação Derradeira” para homenagear seu Rio e a Mangueira que outrora disse que um dia seria lembrado por “Chico da Mangueira”. E encerra, oficialmente o show com “Minha Embaixada Chegou”, nos seguintes trechos: “Minha embaixada chegou / meu povo deixou passar / ela agradece a licença / que o povo lhe deu pra desacatar”.

E como o espetáculo precisa continuar, com as luzes da casa ainda apagadas, o público clama pelo BIS e Chico retorna ao palco com sua banda para encerrar sua caravana do desacato com mais três canções. A escolhida para iniciar a sessão é “Geni e o Zepelin”, denúncia do entreguismo do Brasil ao capital estrangeiro, magistralmente captada em metáforas singulares.

Presença obrigatória em todos os shows de Francisco desde que fora lançada, “Futuros Amantes” é a canção seguinte do BIS. Sobre o amor que pode esperar, “e quem sabe então o Rio será alguma cidade submersa”. Aqui vale um comentário: só um gênio mesmo para utilizar a palavra ‘escafandristas’ em uma música de forma tão genial.

E encerra definitivamente, homenageando os artistas que fizeram parte de sua caravana musical e, principalmente seu maestro soberano, Antônio Carlos Jobim, com “Paratodos”.

Feliz é um povo que tem Chico Buarque.

Triste é aquele que não sabe dar o valor.

Mas ele não liga.

Com classe, pede licença e desacata.

Por: João Santiago

3 Comentários

  1. Chico e um ídolo,especial e amado pelos brasileiros.

  2. Para mim Chico é o maior poeta da MPB

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *